quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A extradição e seu controle pelo STF

A extradição e seu controle pelo STF

Por Carlos Velloso
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da extradição do italiano Cesare Battisti, pedida com base no tratado existente entre o Brasil e a Itália, decidiu que a decisão do ministro da Justiça concessiva do refúgio foi proferida contra a lei brasileira e a convenção de Genebra de 1951, além de usurpar competência do STF.

É que a convenção de Genebra estabelece que não será concedido refúgio a quem haja praticado crime de direito comum. E a lei brasileira — lei 9.474, de 1997, artigo 3º, inciso III — veda a concessão de refúgio aos que tenham cometido crime hediondo. O Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão técnico do Ministério da Justiça, indeferiu o pedido de refúgio formulado por Battisti, porque ele fora condenado pela Justiça italiana pela prática de quatro homicídios qualificados que, pela lei penal brasileira, são crimes hediondos.

Convém esclarecer que as sentenças condenatórias foram confirmadas pela Corte de Cassação italiana. A Justiça francesa, em atenção ao pedido de extradição formulado pela Itália, deferiu o pedido nas mais altas instâncias, o Tribunal de Apelação de Paris, a Corte de Cassação e o Conselho de Estado. Battisti recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos, que negou provimento ao recurso.

Havia, pois, desfavoráveis a Battisti, sete decisões: duas da Justiça italiana, três da Justiça francesa, a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos e a decisão brasileira do Conare. O decidido pelo Supremo Tribunal Federal não teve, de conseguinte, sabor de novidade.

O tribunal, em seguida, deferiu a extradição, pelo voto dos ministros Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie, Carlos Britto e Gilmar Mendes. Até aí, tudo bem. A corte simplesmente exercera a competência que lhe é conferida pela Constituição. A surpresa veio depois.

O STF, por 5 votos a 4, decidiu que, mesmo tendo sido deferida a extradição, caberia ao presidente da República a palavra final. É dizer, o Supremo autolimitou-se, o que é inédito, porque nunca ocorrera a hipótese de o presidente da República descumprir decisão concessiva de extradição.

E essa hipótese nunca ocorreu porque nem a lei nem a Constituição isso autoriza. Em Estado de Direito, tudo se faz de conformidade com a lei. A lei brasileira, lei 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro, artigos 76 a 94, cuida minuciosamente do tema.

Concedida a extradição, será o fato comunicado pelo Ministério das Relações Exteriores à missão diplomática do Estado requerente, que, no prazo de 60 dias, deverá retirar o extraditando do território nacional (artigo 86). Se não o fizer, o extraditando será posto em liberdade, sem prejuízo da expulsão, se o motivo da extradição o recomendar (artigo 87).

É que o Brasil não pode transformar-se em valhacouto de criminosos. Se o extraditando estiver sendo processado ou tiver sido condenado no Brasil, a extradição será executada depois da conclusão da ação penal ou do cumprimento da pena, ressalvado o disposto no artigo 67 (artigo 89). É dizer, ele poderá ser expulso, ainda que haja processo ou tenha ocorrido condenação (artigo 67).

Todavia, o governo poderá entregar o extraditando ainda que responda a processo ou esteja condenado por contravenção (artigo 90; extradições 947 -Paraguai- e 859 -Uruguai).

Seguem-se os trâmites finais da extradição (artigo 91). Depois de entregue ao Estado estrangeiro, se ele escapar à ação da Justiça e homiziar-se no Brasil, será detido, mediante pedido feito por via diplomática, e de novo entregue, sem outras formalidades. Não há na lei, portanto, uma só palavra que autorize o presidente da República a deixar de cumprir a decisão concessiva da extradição, decisão que encontra base na Constituição (artigo 102, I, g), na lei (lei 6.815/80, artigos 76 a 94) e no Regimento Interno do STF (artigos 207 a 214).

O que há é que a entrega do extraditando poderá ser adiada se estiver ele acometido de moléstia grave comprovada por laudo médico (artigo 89, parágrafo único, da lei 6.815/80). Não há nos dispositivos mencionados, constitucionais ou infraconstitucionais, vale repetir, nada que autorize o presidente da República a deixar de cumprir o decidido pelo STF. A menos que seja ressuscitado o que o constitucionalismo sepultou há mais de 200 anos: o direito divino dos reis e dos imperadores, que podiam decidir contra a lei.

Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo de quarta-feira (25/11/2009).

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