Os fins e os meios
Moacyr Scliar
Como José Dirceu tem declarado, por enquanto ele, no processo do mensalão, é réu, não culpado. Correto. Mas apenas para efeito de raciocínio vamos imaginar que ele seja, de fato, culpado. Que conclusão se pode tirar desse perturbador episódio? Trata-se de mais um caso de corrupção, desses que são tão comuns no Brasil?
Certamente não. José Dirceu não é Renan Calheiros (que também por enquanto é só réu, não culpado). Estamos falando de dois diferentes, ainda que de momento só prováveis, modelos de corrupção. Num caso, e na maioria dos casos no Brasil, a corrupção é um fim em si própria: o objetivo é encher o bolso. Mas com José Dirceu a corrupção, se e quando comprovada, certamente não corresponde a isto, corresponde a um projeto político. Um projeto político que agora parece pouco compreensível e que a gente só pode entender recordando a trajetória da esquerda da qual José Dirceu foi um dos expoentes no Brasil. E é uma trajetória que vale a pena recordar. No mês que vem, o mundo inteiro evocará os 90 anos da Revolução Russa de 1917, um acontecimento que condicionou boa parte dos embates políticos no século passado e ensinou muitas e importantes lições. O suporte ideológico do comunismo começou com Marx, que não deu muita atenção à política partidária - achava que a tomada do poder pelo proletariado era inevitável, questão de tempo, apenas. Mas Lenin foi revolucionário e teve de se envolver com a luta política na prática. O processo chegou ao auge com Stalin, e o stalinismo durante muito tempo foi a tônica do comunismo. O stalinismo consagrou o dito segundo o qual o fim - supostamente a construção de uma sociedade justa, igualitária - justifica os meios. Os meios incluíam toda a sorte de manipulação política (Stalin fez inclusive um acordo com a Alemanha nazista), a supressão da democracia representativa, o culto à personalidade e, principalmente, a eliminação dos adversários. Tendo afastado (e mandado matar) seu adversário Leon Trotsky, Stalin desencadeou um grande expurgo tendo como alvo os chamados contra-revolucionários e inimigos do povo. Os números são impressionantes: pesquisas feitas na própria Rússia, após o fim do comunismo, falam de 19 a 22 milhões de vítimas e de 5,5 a 6,5 milhões de prisioneiros nos campos de concentração. Dos 139 membros do Comitê Central do Partido Comunista, 98 foram executados.
Pergunta: mas será que essas coisas não pesavam na consciência dos stalinistas? Não. Eles tinham argumentos em sua defesa. Morre tanta gente no mundo, diziam, de doença, de fome, de catástrofes naturais, que algumas mortes a mais não farão diferença, sobretudo se elas favorecerem a construção de uma nova sociedade. O problema é que, uma vez desencadeado o processo, ele se torna autônomo. Os critérios desaparecem; na dúvida, é melhor mandar executar.
Mas não é disso que estamos falando no Brasil. Estamos falando de uma coisa, felizmente, bem mais benigna. Estamos falando de uma suposta tentativa de consolidação do poder, mediante a compra de apoio. Se foi assim, o raciocínio é óbvio: tratava-se de fazer algumas concessões à moral para conseguir resultados mais amplos. Só que, como a História já cansou de nos ensinar, a distorção dos meios acaba resultando numa distorção dos fins. Tenta-se escrever direito por linhas tortas e acaba-se escrevendo torto.
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